Recentemente, o Passageiro de Primeira publicou um texto sobre a desvalorização dos nossos pontos e milhas. Eu achei a primeira parte do texto excelente, ao estabelecer a relação entre os conceitos econômicos e o mundo das milhas.
Apesar de ser um arquiteto e não possuir o conhecimento para discutir teoria econômica pura, posso considerar que possuo doutorado em teoria econômica das milhas (está lá no meu Lattes, eu só não defendi a dissertação). Então resolvi escrever sobre o assunto.
Antes de seguirmos adiante, esclarecemos que esta é mais uma super contribuição do nosso querido leitor Carlos para o Passagens.top e o mundo das milhas do Brasil.
A Origem da Desvalorização dos Pontos e Milhas
Recapitulando, bem rapidamente, a parte principal do artigo que motivou minha análise: Inflação é depreciação da moeda ou sua emissão em excesso. Os programas de pontos são o Banco Central da sua moeda própria, e o único meio de controlar a inflação, ao se emitir mais moeda (vender pontos, direta ou indiretamente), seria se o lastro (opções de resgate da moeda) crescesse na mesma proporção. (Neste link você pode ler o artigo completo.)
Como a quantidade de assentos disponíveis para troca não aumentou na mesma intensidade em que os pontos foram emitidos, tivemos, consequentemente, o reajuste (inflação) dos valores para resgates.
As empresas até passaram a oferecer outros produtos para troca (cafeteiras, por exemplo), mas isto não foi suficiente para diminuir a procura pelo produto principal (passagens aéreas), acarretando no aumento dos valores.
Discordo do artigo, entretanto, de que “em parte” estamos vivendo um período de inflação de milhas. Se tivéssemos um IGPM (Índice Geral dos Preços em Milhas) ou IPCA (Índice de Pontos ao Consumidor Amplo) seria fácil perceber que estamos em um ritmo de inflação galopante.
Não é em parte, é no todo. Alguns poucos resgates podem até estar mais baratos, mas a média geral dos preços cobrados subiu muito. Seria o mesmo que dizer que como o café e o açúcar ficaram mais baratos (enquanto todo o resto subiu), tivemos apenas inflação “em parte”.
Esta inflação, entretanto, não foi um fenômeno nacional, mas mundial. Todos os programas reajustaram suas tabelas (ou pior, eliminaram-nas). A diferença está nos índices de reajustes. Exemplos podem ser encontrados aqui (a conclusão da culpa, talvez não obviamente, era uma ironia).
Um dado que faltou no artigo, para mim, foi o conceito de taxa de câmbio de milhas. Neste universo, existem moedas podres (Smiles, Latam Pass, TudoAzul), semelhantes ao Peso Argentino (ou Bolívar Venezuelano, dependendo do programa). E moedas fortes, como Livelo, Esfera e IUPP. Além, é claro, do bom e velho Real.
A taxa oficial de troca entre as moedas fortes e as podres é 1:1. Porém, existe o mercado paralelo (como o dólar blue na Argentina) onde estas taxas chegam até a 1:2,6. Como se encontra este mercado paralelo? Basta esperar os famosos bônus de transferência de pontos. O seu ponto Livelo, ao invés de virar apenas um ponto Latam Pass, pode virar o equivalente a dois pontos e seis décimos de Latam Pass.
A mesma coisa com o Real. Latam Pass vende seus pontos por 70 reais, cada, mas cada vez mais são lançadas promoções em que os pontos são vendidos cada vez mais baratos (70% de desconto foi o último).
A inflação das milhas é também provocada por este desequilíbrio entre as taxas de câmbio. Se o aumento do dólar provoca o aumento do trigo, com seus derivados (pão, massas…) ou do petróleo, e gera inflação, o aumento dos bônus de transferência provoca o mesmo efeito. As médias anuais de 2019 e anteriores podem ser encontradas aqui.
Outro ponto interessante: uma das maneiras heterodoxas para se tentar controlar a inflação é fazer o confisco da moeda. Tal como no Plano Collor de 1990, ou no Corralito Argentino, Smiles, Latam Pass e Tudo Azul implantaram um limite na quantidade de CPFs resgatáveis por cliente.
O TudoAzul foi ainda mais severo que seus concorrentes. Nenhum deles, entretanto, se preocupou em limitar a emissão da moeda própria. O resultado, assim como com a Zélia e o Cavallo, fracassou (o que já era esperado).
Os Verdadeiros Culpados pela Desvalorização dos Pontos e Milhas
E eis aqui o cerne da discordância com parte do artigo e alguns comentários. Os únicos culpados pela inflação dos resgates nos programas de milhagem são os próprios programas de milhagem. Eles controlam a moeda, as taxas de câmbio e ainda o estoque dos produtos (assentos em voos) que seus pontos podem comprar.
De 2010 a 2018, o Latam Pass aumentou a emissão de seus pontos de 53 bilhões para 90 bilhões. Smiles, de 2012 a 2018, aumentou de 36 bilhões para 108 bilhões (dados disponíveis nos balanços das empresas).
As empresas de cartões de crédito, a Livelo, os milheiros obrigam os programas de pontos a [se] venderem? Claro que não. Os programas (seus controladores, as próprias empresas aéreas) fazem isto para lucrarem cada vez mais e embolsarem os valores, ainda que em prejuízo dos clientes (novamente, não é um fenômeno simplesmente nacional).
Segundo o Financial Times (por meio do LoyaltyLobby):
“The profitability and the size of these loyalty programmes, it’s the only reason American Airlines isn’t in bankruptcy right now,” said Stifel analyst Joseph DeNardi. “It’s the only reason United isn’t bankrupt, or on the verge”.
O problema está em como é feita a administração das expectativas com os programas. O cliente compra 20 mil pontos, mas quando vai resgatar, a passagem que custava o mesmo preço já dobrou de valor (a tabela é dinâmica, cobramos quanto quisermos).
Ou, tática pior, os vários parceiros que eu anuncio que tenho, quando o cliente vai querer utilizá-los, descobre que não são tão “parças” assim; ou a passagem que é anunciada a 20 mil pontos tem, mas está em falta (ou estamos passando por dificuldades técnicas para resgatá-la, mas nossos técnicos já estão verificando a situação, algumas vezes há mais de dois anos).
É claro que todas as empresas estão respeitando seus próprios regulamentos. Controlam a moeda, o estoque dos produtos e ainda redigem o regulamento em que, basicamente, dizem que podem mudar o que quiser, quando quiser, do jeito que quiser.
Comportam-se como Francisco Lopes, em 1999, que eliminou as bandas cambiais (igual a valores mínimos e máximos da tabela dos resgates do dólar/milhas) e o câmbio (como as milhas) virou flutuante (desvalorização do real em 70% em poucos dias).
A questão é que, pelo menos para os programas de pontos, existe (?) o Código de Defesa do Consumidor, mas esta é outra longa história. A fidelização já foi há muito abandonada, a credibilidade está no mesmo caminho e o resultado das diversas mudanças pode ser trágico para as empresas.
Mas se é para sempre reclamar tanto assim, não seria melhor então abandonar de vez estes programas?
Temos Alternativas para o Caos Nacional?
Bom, sim e não. Não são vários os que emigraram para EUA, Canadá, Portugal e Inglaterra, cansados das constantes crises tupiniquins, em busca de estabilidade e possibilidade de crescimento? Pois bem, alguns investem em formas de pontuar em programas estrangeiros.
Os que não conseguem emigrar / os que se veem presos aos programas de pontos nacionais precisam investir em educação para alcançarem os melhores retornos por aqui. Ainda existem boas oportunidades, mas é preciso se especializar cada vez mais no assunto.
Os programas de milhagem, quando precisam, jogam sujo. Inflação é apenas um dos fenômenos do modo “peculiar” como são administrados. É preciso ser claro com o histórico de seus comportamentos para que o fiel ou ocasional leitor não seja surpreendido (citando, desta vez, Gustavo Franco) com o saco de maldades que estes programas podem infringir aos seus clientes.
Observação: Este texto foi originalmente escrito no dia 28 de setembro e eu “agradeço” ao Tudo Azul por demonstrar na prática, apenas dois dias depois, quem são os principais responsáveis pela desvalorização dos nossos pontos e milhas.
Agradecemos mais uma vez ao Carlos pela excelente análise e contribuições para o Passagens.top.
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