Todos tem se perguntado qual será o impacto do covid-19 na indústria de viagens e baseado nisso nosso querido leitor Carlos produziu uma excelente análise sobre o cenário atual e o que esperar da indústria nos próximos meses e talvez anos.
Agora é com você, Carlos!
Antes de começar, deixo claro acreditar haver coisas muito mais importantes acontecendo e a situação é e será complicada para uma parcela significativa da população. Mas o isolamento social produz uma maior sobra de tempo e tem assuntos que acho mais aprazíveis que o noticiário.
A crise de 2008
Pensando a respeito da atual crise sanitária e econômica, tentei levantar como o mercado das milhas e viagens se comportou na última grande, que foi a do subprime americano de 2008. Não será um artigo científico, apenas uma tentativa de estabelecer possíveis cenários para o mercado futuro.
Recapitulando rapidamente, houve nos EUA, ao longo de anos, um gigantesco excesso de empréstimos baseados em garantias imobiliárias no mercado americano, alimentado por um crescimento quase artificial do valor de fundos e propriedades imobiliárias. Em 2008, essa bolha estourou, arrastando consigo o mercado bancário e acionário americano e, consequentemente, o resto do mundo para um período de recessão. Apesar da gravidade, houve questões bastante diferentes da atual.
Primeiramente, foi uma crise financeira, mas não havia qualquer restrição para a circulação de pessoas. Houve uma valorização do dólar frente ao real (cotação de R$ 1,55 subiu a R$ 2,40, mas voltou a cair alguns meses depois para o patamar abaixo de 2 reais). E, apesar de ter afetado o Brasil, o efeito cotidiano foi atenuado pela forte política de gastos de recursos estatais em obras e programas sociais e pelo crescimento do mercado e consumo internos (sem entrar no mérito dos aspectos políticos relacionados à questão). Foi a famosa “marolinha”.
A crise de 2008 e a aviação
A aviação civil nacional, da época, já tinha passado pela quebra da BRA e era composta, em termos de relevância, por TAM, prestes a ingressar na Star Alliance e lançar o Multiplus; Gol, em processo de fusão com a compra da Varig; Webjet, em fase de crescimento; Azul, que ainda iria realizar seu primeiro voo; e OceanAir (futura Avianca Brasil).
O Brasil estava em fase de plena expansão de rotas, com chegada de Mexicana, Turkish, US Airways e ampliação das rotas operadas, principalmente, pelas companhias americanas (Delta, American, Continental).
Inicialmente, para nós, o impacto maior foi o da subida do dólar em mais de 50%. As promoções de passagens aparecerem, mas os descontos não compensaram o aumento do câmbio. Com o passar dos meses, entretanto, as promoções continuaram, se tornaram até mais agressivas e o câmbio voltou a patamar próximo do anterior, criando excelentes oportunidades de compra de passagens.
Na parte de hospedagens, apareceram promoções incríveis. Duas estadias nos hotéis mais baratos de uma rede dariam direito a uma estadia em qualquer outro hotel da rede no mundo. Ou cada estadia contava como duas ou dava o dobro dos pontos.
No mercado da aviação, a crise implicou, ao longo do tempo, na fusão de diversas companhias aéreas americanas: Delta com Northwest, United com Continental e American com US Airways. E as milhas foram uma significativa fonte de recursos para as empresas continuarem funcionando. Por exemplo, a American Airlines vendeu um bilhão de dólares (!) em milhas para o Citibank, o que certamente adiou a sua concordata mais tarde.
Eram comuns as promoções de ganhos acelerados de milhas ao voar, tanto milhas resgatáveis quanto milhas de qualificação, em uma época em que as distâncias percorridas ainda eram o principal fator para cálculo desta “moeda”.
E, já naquela época (ou desde sempre), a Alitália estava em crise. 🙂
O impacto do covid-19 na indústria de viagens – O que esperar?
Mas, afinal de contas, qual será o impacto do covid-19 na indústria de viagens? Bem, a atual crise, ainda em desdobramento, parece que será bem mais grave do que a de 2008, especialmente para o setor de turismo. Se naquela época, o setor financeiro foi o mais afetado, com quebra de bancos e seguradoras, nesta agora, com a restrição de deslocamentos, bloqueio de fronteiras, suspensão de grandes parcelas de voo internacionais, fechamentos de hotéis e cancelamentos de cruzeiros, é difícil prever como será a sobrevivência de várias empresas, mesmo que ocorra ajuda governamental. São várias ações sem precedentes na história moderna.
Com este quadro, o primeiro de tudo é ter certeza de dispor de um colchão financeiro double king-size extra para enfrentar períodos nebulosos à frente, que podem ter duração prolongada. Viajar é fantástico e enriquecedor, mas não é barato nem fundamental (talvez seja, mais há coisas mais fundamentais antes).
Segundo, avaliar o seu patrimônio de pontos. Assim como em época de crise todos procuram moedas fortes, o mesmo se aplica aqui. Considero os pontos nos cartões de crédito, Livelo e programas estrangeiros como relativamente seguros. Já nos programas nacionais, nem tanto (Programa Amigo “feelings”). Analisar se as assinaturas de clubes valem a pena e, ainda mais, se eventuais transferências realmente valerão a pena.
Em relação à moeda, a alta do dólar não foi tanta (por enquanto) quanto em 2008. Para ter o mesmo percentual, a cotação deveria passar dos 6 reais. Acho que não chegaremos lá, mas, em compensação, talvez a moeda não caia muito de volta ao patamar anterior. E, além disso, a cotação já partiu de um valor mais elevado. O dólar já estava caro, ficou mais caro ainda e será um fator desfavorável a viagens.
A aviação nacional
No mercado da aviação nacional, já assistimos à quebra da Avianca Brasil. Das três grandes que sobraram, a Latam me parece muito grande e multinacional para quebrar (“too big to fail”, expressão adotada para os bancos que sobraram pós concentração bancária nos EUA), além de ter acionistas relevantes (Delta e Qatar). A Azul, em que pese o péssimo programa Tudo Azul, parece ser bem administrada e o balanço de 2019 apresentou um desempenho superior a Latam e Gol (olhando lucro e endividamento, embora confesso que achei bastante confusos os dados).
Já a Gol é a empresa que apresentou menor lucro e maior endividamento, tendo ainda falhado, pela segunda vez, na sua tentativa de reincorporar a Smiles. É de conhecimento relativamente geral que o seu programa de milhagem é uma fonte constante de receitas para melhorar o seu desempenho. Se fosse para apontar a companhia com mais risco de sofrer graves consequências da crise atual, diria ser a Gol, embora torça, com sinceridade, pelo bem das empresas, tanto pelos malefícios que a diminuição de opções implica ao mercado (vide Avianca Brasil) quanto pelos milhares de empregos que geram.
O Brasil já vinha em um processo de redução de rotas e empresas internacionais (Singapore, Etihad, South African) e, se em 2008 a economia vinha em ritmo crescente, agora estamos devagar quase parando há bons anos. Podemos ter mais empresas abandonando o barco, como Air China, Air Europa ou Alitalia; suspendendo rotas, como Porto ou Maceió com a TAP ou Montreal com Air Canada; mal chegando e já indo, como Norwegian (ou veio vindo e acabou fondo, como dizia Faustão); ou desistindo antes de entrar em campo, como a Virgin.
O futuro do mercado de aviação e as promoções
No mercado da aviação, acho que há pouco espaço para mais consolidações do setor. E as companhias que sobraram acabam sendo grandes demais para serem deixadas ao relento. A TAP, por ainda ser majoritariamente estatal, acredito ser segura, mas nunca é bom deixar um saldo muito grande no Miles&Go. Avianca e Lifemiles acho um pouco menos seguros.
De qualquer forma, haverá sérios problemas de liquidez e isto irá implicar na necessidade de encher os aviões, quando for possível. Então, é provável que promoções de passagens sejam bastante proveitosas e/ou estejam aliadas a benefícios de milhas resgatáveis e qualificáveis adicionais. Mas nesta segunda parte, como o mercado de milhas voadas se tornou um setor mesquinho e depressivo, não acredito que uma tentativa de melhora das “Madalenas arrependidas” será significativa.
Penso que as promoções serão maiores para passagens em econômicas. Em executiva, devemos ter boas tarifas, mas nada muito excepcional. Enche-se o avião na econômica para pagar os custos, lucra-se na executiva. Mas creio que teremos boa disponibilidade para uso das milhas na executiva durante a maior parte do calendário, sem o martírio de vagas a conta-gotas.
Poderá ser mais fácil virar Latam Aeternum, Smiles Centurion ou Tudo Azul Titanium, mas os benefícios serão limitados aos voos próprios, já que as empresas permanecerão fora de alianças. E nas internacionais o investimento ainda terá de ser alto devido à alta cotação do dólar.
Os bônus de transferência e as promoções de venda de milhas, direta ou indiretamente através de parceiros (25 pontos por cada real gasto em balas Juquinha), entretanto, poderão ser mais significativos. Se vai valer a pena, serão outros quinhentos. É improvável que Livelo melhore os deságios para as companhias estrangeiras pelo aumento do custo com a alta do dólar, e o Santander transferindo 1:1 para a Ibéria pode ficar em risco.
Já no setor hoteleiro é onde acredito que surgirão as melhores oportunidades. Tanto de tarifas excepcionalmente generosas quanto grande facilidade para obtenção de status com as redes a partir de redução da quantidade de estadias ou majoração dos pontos ganhos com as mesmas. Mas acho que não veremos outra versão das fantásticas “fique duas noites em Ibis Budget e ganhe uma noite em qualquer Sofitel”.
Algumas Palavras
Ao final, o impacto do covid-19 na indústria de viagens deverá ter consequências mais graves e oferecerá menos benefícios que a crise de 2008. Além disso, os efeitos, especialmente no Brasil, podem ser longos. Espero que, apesar das adversidades, todos consigam, o mais rápido possível, retomar a normalidade.
Alguém arrisca outras previsões diferentes destas de Walter Mercado e Mãe Dinah? 🙂
Mais uma vez agradecemos o Carlos por mais uma excelente contribuição para o mundo dos pontos e milhas em um momento onde todos ainda estamos tentando digerir os acontecimentos atuais e nos planejarmos para o futuro.
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